(Parte 1)
NOÇÕES GERAIS DE DIREITO
Conceituar direito pode ser tarefa tormentosa. Isso se deve ao fato de o direito não ser uma ciência exata e, portanto, trabalhar com interpretações dos fatos, condutas e normas.
Se o direito trabalha com interpretações, é evidente que está sujeito à influência dos valores e ideologias das pessoas que o elaboram e aplicam.
Por isso há uma ligação muito próxima do direito com a moral. Quando uma norma vai ser redigida, ela vai espelhar os valores da sociedade e da época em que é elaborada.
Logo se percebe que o direito é dinâmico, se altera no tempo e no espaço, de acordo com as variações dos valores das sociedades. Normalmente, não se faz uma lei sobre um assunto uma única vez na história. Um mesmo assunto pode obrigar a revisão da norma a seu respeito várias vezes ao longo do tempo.
Também, um mesmo assunto pode ser regulado de várias formas diferentes, em leis diferentes em cada sociedade que deva reger, ao mesmo tempo, mas em espaços diferentes. Isso faz com que um mesmo assunto possa ser tratado de diversas maneiras ao mesmo tempo, em países diferentes, por exemplo.
Então, se um povo valoriza a individualidade, as leis vão refletir isso, garantindo a supremacia dos direitos individuais sobre os direitos coletivos. Se outra sociedade valoriza a coletividade, suas leis facilitarão a associação entre pessoas, estabelecerão a supremacia do coletivo sobre o individual, restringirão direitos individuais. E pode acontecer de, em uma mesma sociedade, em um momento, a individualidade ser mais valorizada e, posteriormente, passar-se a valorizar mais a coletividade. E isso não impede revisitas sucessivas de valores tidos como superados, com ligeiras mudanças, geralmente. Tudo isso, se refletirá nas leis e no direito daquela sociedade. Assim acontecerá com todos os assuntos de interesse humano, pois o direito é uma construção humana.
Essa construção vem sendo aprimorada ao longo da história. Por isso, alguns estudiosos usam a expressão gerações de direito para se referir à evolução de direitos fundamentais. Assim, os direitos de primeira geração (final do séc. XVIII) são os ligados à liberdade, em oposição aos Estados Absolutistas: direito à vida, à liberdade, à propriedade, à liberdade de expressão, à liberdade de religião, à participação política, à liberdade de associação etc. Os direitos de segunda geração (final do séc. XIX e início do séc. XX) estão ligados ao princípio da igualdade material entre os homens e se traduzem no que conhecemos como direitos sociais, culturais, econômicos e coletivos. Os direitos de terceira geração (final do séc. XX) se baseiam nos valores universais da fraternidade e solidariedade entre os homens, e se expressam na forma de direito à autodeterminação dos povos, ao desenvolvimento, ao meio ambiente sadio e equilibrado, de propriedade sobre o patrimônio comum da humanidade, direito à paz e transindividuais. Direitos de quarta geração (início do séc. XXI) seriam aqueles surgidos com a globalização: direito à democracia, o direito à informação e o direito ao pluralismo.
Percebe-se que o reconhecimento de direitos vai sendo conquistado pelos povos, de acordo com a evolução dos valores. Garantida uma espécie de direito, novas necessidades surgem e obrigam à revisão dos valores e das leis.
A ressalva que se faz ao uso dessa expressão é que as gerações de pessoas vão se substituindo umas às outras, já que o ser humano é mortal, e, nas gerações de direito não ocorreria essa superação, mas a acumulação, a somatória, a complementação de um direito com o próximo direito surgido. Outros estudiosos dão a esse fenômeno de evolução do direito o nome de dimensões, por esse motivo.
Todos os povos têm um sistema jurídico, seja não-escrito e elementar ou bastante elaborado e refinado e uma autoridade para instituí-lo e cobrar seu cumprimento.
Feita essa breve introdução, voltamos a questão inicial do conceito de direito. O que é direito?
A resposta a isso pode variar no tempo e no espaço, de acordo com os valores do sistema em que estiver inserido aquele direito, portanto.
Numa abordagem mais pragmática e objetiva, direito é o conjunto de normas que regula a conduta humana em determinada sociedade. Não são consideradas questões como a legitimidade da autoridade que o elabora e faz cumprir, nem se o direito vai promover o bem geral. Por isso, nessa abordagem, o direito estabelecido por um traficante de drogas no morro, é direito. Não se entra no mérito da qualidade do direito. Direito é a norma estabelecida com caráter obrigatório. Normalmente, o direito nessa concepção se altera de acordo com a vontade ou o interesse do poderoso do momento.
Noutra forma de ver, de concepção mais humanista, não se consegue entender o direito dissociado do elemento do justo. Para essa concepção, o direito deve promover o ser humano, buscar o bem-estar humano e o ideal do justo. Por isso está permanentemente em evolução, de acordo com a evolução humana e social. É a concepção mais avançada de direito que temos.
É natural, então, que surja a dúvida do que seria o ideal do justo. O justo, em caráter concreto, varia no tempo e no espaço, inclusive de pessoa para pessoa: o que é justo para mim, pode não ser justo para você; o que era justo ontem, pode não ser justo hoje (e vice-versa); o que é justo aqui, pode não ser justo em outro país. Quando mencionamos o ideal do justo, nos referimos ao justo em caráter abstrato, à nossa mais alta aspiração. Assim, justo é tudo aquilo que permite a realização ontológica do ser humano, ou seja, tudo aquilo que permite ou incentiva que cada pessoa possa cumprir aquilo para o que o humano existe, sua natureza comum que é inerente a todos e a cada um dos seres humanos e apenas por esse fato. Uma norma é tão mais justa quanto mais permite que o ser humano, genericamente considerado, desenvolva suas potencialidades, sem afetar o desenvolvimento da potencialidade dos demais. Isso é muito complexo e profundo e exige uma boa dose de reflexão filosófica.
Por isso, é difícil de alcançar. Embora existam exceções, é forçoso reconhecer que o direito, assim como as sociedades, em geral, já avançaram muito no seu processo civilizatório e na promoção do bem-estar humano, quando se olha através da história. Afinal, o homem moderno tem apenas cerca de 200 mil anos, o que é muito, muito pouco tempo de evolução, e que o que chamamos de civilização tem, em torno de, apenas, 12 mil anos, lembrando que o planeta tem 4,5 bilhões de anos. Somos os caçulas e estamos, ainda, na infância ou, talvez, na puberdade. De todo modo, temos ainda muito o que avançar e vamos fazendo isso aos poucos.
Há um jusfilósofo brasileiro que entendeu que o direito seria a somatória do fato social que precisa ser regulado em nome da harmonia social; do valor social que deve ser levado em conta, pois a regulação de determinado fato se dará conforme o que a sociedade valorize naquele momento; e da norma, ou seja, do processo de criação da regra com autoridade de imposição a todos (teoria tridimensional do direito: fato+valor+norma; Miguel Reale). Isso ilustra bem como o direito é, normalmente, estabelecido. É claro que há exceções, em situações nas quais uma pessoa ou um grupo muito restrito, detém o poder e estabelece as normas de acordo com seus interesses exclusivos, impondo-as à sua população, em geral, por meio do medo causado por ameaças à segurança pessoal dos cidadãos, como nas ditaduras.
Nós trabalharemos com a concepção ideal de direito, que é aquela que o entende como o conjunto de normas de conduta, relação e organização social que se inspiram na ideia do justo, dotadas de força impositiva.
Como o homem não vive de modo isolado – “o homem não vive: convive!” -, é preciso garantir o menor potencial de conflito entre os membros da sociedade. Para perseguir essa harmonia social é que se constroi o direito, que vem externar as faculdades de cada um e as limitações a elas, criando obrigações e deveres, para permitir a coexistência pacífica, através da certeza e segurança na vida comunitária.
Vivendo em grupos, reconhece-se a necessidade de algum tipo de estrutura que coordene ou direcione o bem-estar comum, de um governo comum, encarregado de gerir, administrar, direcionar os cidadãos a objetivos comuns, preservando a segurança do grupo. Para isso, adota-se um sistema político. Há quase quatro séculos, os povos se organizam politicamente na forma de Estados, que têm por elementos básicos um povo (grupo de pessoas com mesmas tradições, história, idioma, cultura), um território (lugar geograficamente considerado como de ligação com o povo, onde ele vem vivendo sua história) e um poder político (forma de administração e organização dos interesses comuns).
Então, o direito, além de regular a convivência e as relações das pessoas entre si, dos grupos de pessoas entre si, também regula a estrutura política e as relações recíprocas entre cidadão e Estado.
Para que isso funcione, cada um abre mão de parte de sua liberdade em nome de tornar a convivência social pacífica e previsível. A extensão do comprometimento da liberdade individual vai depender da ideologia política adotada, podendo ser maior (num Estado mais centralizador) ou menor (num Estado mais liberal). As formas e os arranjos políticos são variados, podendo ou não ter elementos em comum. Cada povo encontra a sua forma de organização política, indo do extremo de uma organização centralizada em uma única pessoa (ou pequeno grupo), que, em geral, se mantém indefinidamente no poder e estabelece as normas de acordo com sua vontade exclusiva, cabendo aos demais a obediência, passando pelo modo de organização participativa, na qual a população é chamada a tomar decisões que vinculam os governantes, até o outro extremo de todos conhecerem o seu papel para manter a sociedade funcionando bem para todos, sem necessidade de poderes instituídos para governar. É possível encontrar todo tipo de arranjo político. Cada povo tem o seu, que pode ser alterado.
Sendo como for, como nem todos pensam da mesma forma, têm os mesmos valores e condutas, é preciso que aquilo que seja estabelecido como norma de conduta tenha força impositiva, ou seja, tenha caráter de cumprimento obrigatório, para preservar o sistema que, por sua vez, quer preservar a coexistência pacífica, harmônica, segura e previsível.
Para que as regras sejam impostas a todos, é preciso que sejam estabelecidas pela autoridade dotada de poder para isso e é necessário, na grande maioria das vezes, que a infração à norma, o desrespeito à lei posta, acarrete uma pena, uma sanção, um castigo, que possa ser imposto ao infrator de modo coercitivo, ou seja, mesmo contra sua vontade, como meio de desincentivo a comportamentos que ponham em risco a estrutura social. Assim, na atualidade, a coerção é a força que emana da soberania do Estado e é capaz de impor o respeito à norma legal.
Então, já vimos que um conceito possível de direito é o conjunto de normas de conduta, relação e organização, inspiradas no ideal do justo, para a harmonia social, dotadas de força impositiva.
E por que precisamos do direito? Já entendemos que o direito é uma construção humana, necessária para viabilizar a vida em coletividade. O direito, na concepção que estamos usando, tem a missão de tornar a vida mais cômoda e justa, individual e coletivamente. Num plano ainda hipotético e utópico, dia virá que o direito não precisará ser dotado de força coercitiva, porque todos os cidadãos estarão convencidos das vantagens individuais e coletivas de cumprir as leis, que serão muito aperfeiçoadas e justas. E, talvez, num grau de evolução humana máxima, as sociedades possam mesmo abrir mão das estruturas jurídicas que conhecemos, porque a ninguém ocorrerá agir de forma a causar perturbações na harmonia social.
Enquanto isso, temos que saber como o direito opera. É através da imposição de normas pela autoridade e da coerção. Daí a importância da estruturação político-ideológica das sociedades para a construção de seu direito. As normas podem ser escritas (direito posto, a lei) ou não-escritas (direito natural).
O direito posto, escrito, chamado direito positivo, é aquele elaborado pelas autoridades do país e expresso em textos escritos (por isso direito posto: posto por escrito). Normalmente, passam por processos legislativos descritos também em leis que regulam a criação das normas escritas, os diversos tipos de normas, a sua forma, a competência para redigi-las etc. O direito positivo é o que, em geral, o leigo entende por direito: a lei.
Mas há normas que nem precisam ser escritas para que sejam adotadas. É o que se chama de direito natural ou, até, de direito intuitivo. Essas normas estariam acima do direito positivo e serviram de modelo para ele. Seu conteúdo está intimamente ligado à ética e à ideia do justo. As bases para o direito natural poderiam ter origem em Deus, em um contrato social ou na legitimidade de resistência à injustiça, porque se baseia no sentimento do justo. O direito natural é mais invocado, normalmente, em épocas de crise das sociedades, que acaba determinando uma crise do próprio direito posto, que se torna insuficiente para responder aos anseios sociais nesses momentos. Assim, o conteúdo do direito natural acaba influenciando o conteúdo do direito positivo.
O direito, então, é composto de mais do que apenas de leis. No Brasil, há diversos tipos de normas escritas (decretos, decretos-lei, leis ordinárias, leis complementares, portarias, normas regulamentadoras, instruções normativas, súmulas vinculantes etc.), originadas por diversas autoridades da estrutura política do Estado, do governo. Elas são complementadas por normas não-escritas, como os princípios e interpretações de normas escritas, como a doutrina (opinião fundamentada de juristas) ou a jurisprudência (conjunto de decisões reiteradas do poder judiciário num mesmo sentido sobre determinada questão).
É fácil perceber, então, que temos direito em todo lugar, se entendemos o direito como um conjunto de regras: temos direito no trânsito, nas empresas, nas escolas, nas religiões, nos hospitais, nas famílias, nas casas das pessoas, nas repúblicas de estudantes, entre um casal e, até mesmo, conosco mesmo, normas pessoais.
O maior ou menor grau de flexibilidade das normas vai depender da sua abrangência: quanto maior o número de pessoas atingidas por uma norma, mais difícil ela é de ser modificada ou flexibilizada. Quanto menor o número de pessoas atingidas por determinadas regras, mais flexíveis elas podem ser. Por isso, mudar uma regra pessoal é mais fácil, porque só depende de mim comigo mesma querer alterá-la ou flexibilizá-la. Mudar a Constituição de um país, que é a lei máxima, é bem mais difícil. Isso é importante para trazer a sensação de segurança e certeza jurídicas às pessoas, que precisam acompanhar e estar cientes das mudanças, para poderem cumprir as leis. A previsibilidade é muito importante para a estabilidade social. Por isso, para elaborar uma lei ou modificar uma lei, é preciso seguir um processo previamente determinado também em uma lei. Isso tudo é como que um grande combinado entre as pessoas.
As normas jurídicas variam, então, tanto em quantidade, como em qualidade.
É importante para a vida em sociedade que o direito tente garantir o máximo possível que as coisas aconteçam de uma determinada forma predefinida e conhecida de todos.
A SOBERANIA
Portanto, já há quatro séculos, se reconhece que um povo, fixado num território, com uma organização política tem soberania, ou seja, poder absoluto de autodeterminação, que não reconhece poder concorrente (internamente) ou superior (externamente). Todo Estado (povo+território+poder) é soberano para estabelecer o direito dentro de seu território.
Nos regimes democráticos, esse poder de autorregulação se dá com base no interesse da nação: o governo é mandatário do povo e deve exercer a soberania em seu nome e interesse. Nos regimes autocráticos, isso fica a cargo daquele que esteja no poder.
Assim, a todo Estado se reconhece, modernamente, soberania. Os Estados, independentemente do número de habitantes, de sua extensão territorial ou de sua opção de organização política, são considerados iguais nas relações internacionais. Teoricamente, um Estado de pequeno território e baixa população teria o mesmo peso nas relações com seus pares, pelo fato de ser Estado, assim como todo ser humano tem direitos básicos apenas pelo fato de ser humano. Cada pessoa natural é também um centro de poder soberano sobre sua própria existência. Dependendo do regime adotado pelo Estado em que vive, esse poder individual é maior (em regimes mais liberais) ou menor (em regimes mais centralizados).
A dimensão interna da soberania se justifica no interesse de organizar a vida comunitária de determinada sociedade, tornando viável a coexistência de pessoas em determinado espaço físico. Internamente, se o Estado não fosse dotado de soberania, não teria autoridade para estabelecer leis e normas de conduta para a harmonia social ou para o interesse daquele que esteja no poder. Nesse aspecto, a soberania representa o poder supremo dentro de seu território.
A dimensão externa da soberania é explicada no reconhecimento mútuo de autodeterminação, na representação dos interesses internos perante outros Estados, pressupondo igualdade entre os integrantes da ordem internacional, com respeito recíproco e abstenção de interferências uns nos outros. Nesse aspecto, representa o poder independente dos demais Estados.
Para tanto, foi preciso que a ideia de Estado evoluísse para sua concepção como sujeito de direito, do que falaremos mais adiante.
No entanto, embora se reconheça soberania aos Estados Nacionais, pressupõe-se a existência de uma ordem internacional, em razão da necessidade dos países relacionarem-se uns com os outros. Essas relações se dão sob diversos aspectos, como mencionado.
E, do mesmo modo que o ser humano com poder de autodeterminação de sua vida tem de abrir mão de certa parcela de sua soberania pessoal para relacionar-se com outros seres humanos (na família, na escola, nas entidades religiosas, no trabalho, no trânsito, na política, na sociedade...), os Estados acabam por reconhecer, de maneira recíproca, determinados arranjos internacionais, passando a adotá-los, em nome de relacionar-se internacionalmente, numa convivência harmoniosa e pacífica. Por isso, os Estados mantêm estruturas diplomáticas com o objetivo de relacionarem-se, defendendo seus interesses internos perante os demais e de fazerem alianças.
Nesse contexto, embora, teoricamente, todo Estado tenha o mesmo valor na ordem mundial, que lhes reconhece igualdade, o fato é que alguns países conseguem ter mais destaque e peso para suas decisões, detendo, portanto, mais poder de influência, geral ou setorial, podendo chegar até o status de potência mundial.
A relação que, na teoria, é estritamente equilibrada, na prática não encontra essa mesma estabilidade. Na vida dos Estados também há fortes e fracos e isso dependerá da situação a ser enfrentada e dos elementos de troca que os Estados detenham.
Portanto, o aspecto jurídico de soberania, que é, de certa forma, estático, é constantemente desafiado pelo cotidiano de situações práticas em que os Estados estão envolvidos e seus interesses internos, que acabam, muitas vezes, determinando certa dose de renúncia de soberania para que possa obter tais interesses. Do ponto de vista prático, a soberania é mais flexível.
Quando um Estado, espontaneamente, decide assinar um acordo ou tratado internacional para reconhecê-lo como lei dentro de seu próprio território, embora não tenha sido produzido pelo legislativo local, exerce sua soberania nessa decisão, flexibilizando-a: de maneira voluntária, abre mão de seu poder supremo de autodeterminação em nome de harmonizar seus interesses com os demais.
Há, portanto, outros fatores de maior peso, como a economia, especialmente, a política, fatores religiosos etc., do que a ideia jurídica de soberania a dirigir o curso da vida dos Estados na atualidade.
Hoje as ideias de soberania e interdependência devem ser trabalhadas em conjunto.
Uma experiência que vem trabalhando a ideia de soberania, agregando-lhe inovações, que a um tempo a relativizam e fortalecem, é a União Europeia (1993), tratado entre países do continente europeu que evoluiu de acordos econômicos (Comunidade do Carvão e do Aço, 1952; Comunidade Econômica Europeia, 1967) para englobar também uma união política, na qual os países-membros mantêm sua independência, criando e adaptando-se, porém, a uma estrutura supranacional que estabelece normativas conjuntas e negociadas a serem seguidas por todos, com por objetivo de garantir a livre circulação de pessoas, bens, serviços e capitais, de legislar assuntos comuns no campo jurídico e manter políticas comuns para atividades econômicas (comércio, agricultura, pesca, indústria, energia e desenvolvimento), defesa e relações exteriores. Essa é uma experiência inédita, nessa dimensão e profundidade, pois os países-membros podem adotar moeda única e voluntariamente submetem-se a instituições comuns (Parlamento Europeu, Comissão Europeia, o Conselho da União Europeia, o Conselho Europeu, o Tribunal de Justiça da União Europeia e o Banco Central Europeu, entre outras) e está enfrentando duros testes nos últimos anos, como as crises econômicas profundas de alguns de seus membros, como a Grécia; as intensas migrações de pessoas vindas de zonas de conflito no Oriente Médio e o Brexit, a saída da Grã-Bretanha do tratado.
(Parte 2)
O ESTADO COMO FIGURA DE AUTORIDADE
No atual estágio da humanidade, conforme vimos, os povos têm se organizado na forma de Estados. Os Estados Nacionais, ou simplesmente Estados, são o fruto de uma evolução histórica da humanidade na forma em que os povos se organizam. Esse termo passou a ser usado com essa significação a partir do século XV. Refere-se à forma de organização política dos países, às nações politicamente organizadas.
Nessa acepção, o Estado é formado por três elementos básicos, já mencionados: povo, território e poder.
Povo é o conjunto de indivíduos que falam a mesma língua, têm costumes e hábitos idênticos, afinidade de interesses, história e tradições comuns.
Território é a base geográfica sobre a qual um Estado exerce sua soberania (solo, rios, lagos, mares interiores, águas adjacentes até 22 km do litoral, golfos, baías e portos, espaço aéreo até 100 km de altitude e navios de guerra).
Poder se refere à organização administrativa de um povo em seu território, exercendo sua soberania, de acordo com suas opções políticas (forma, regime e sistema de governo).
Desse modo, a maior figura de autoridade que se reconhece hoje é o Estado. Não haveria nada acima dele.
De acordo com a organização político-administrativa de um povo haverá as figuras de representação do poder, que assumem a competência (no sentido de poder para a prática de determinado ato) para elaborar o direito daquele povo e fazê-lo cumprir em seu território, conforme também já foi dito. Já há quatro séculos se reconhece que um povo, fixado num território, com uma organização política tem soberania, ou seja, poder absoluto de autodeterminação, que não reconhece poder concorrente ou superior. Todo Estado é soberano para estabelecer o direito dentro de seu território, como vimos.
Na atualidade, a maioria dos Estados se organiza combinando formas, regimes e sistemas.
As possibilidades mais usuais são:
quanto à forma de governo:
monarquia e
república;
quanto aos regimes de governo:
na monarquia:
absoluta e
limitada
na república:
aristocrática,
democrática,
autoritária e
totalitária;
quanto aos sistemas de governo:
na monarquia:
absoluta/estamental e
limitada/constitucional ou parlamentar
na república democrática:
parlamentarismo e
presidencialismo.
Não há uma regra fixa, tendo em vista que cada povo é soberano para estabelecer seu arranjo e estrutura político administrativa. Assim, as formas, regimes e sistemas podem ser combinados livremente.
A monarquia é a forma de governo que tem, tradicionalmente, como características básicas a autoridade centrada em uma única pessoa, a vitaliciedade do poder em que essa pessoa está investida e a hereditariedade na sucessão de pessoas investidas no poder. Essas características estão mais presentes na monarquia absoluta, em que todo o poder se concentra nas mãos de uma única pessoa, que exerce todas as funções do Estado: é o legislador, o administrador e o julgador.
A monarquia limitada se subdivide nos sistemas estamental, constitucional ou parlamentar. A monarquia estamental foi usada na época feudal, quando o monarca dividia seu poder, em alguma de suas funções, com potentados ou membros da nobreza, como a cobrança de impostos, p.e.. Na monarquia constitucional, o monarca exerce a função executiva, de modo vitalício, nos limites da Constituição, havendo um legislativo e um judiciário. Esse foi o tipo de monarquia que tivemos no Brasil. Já a monarquia parlamentar é caracterizada pelo fato do monarca não exercer funções de governo, de administração do país. A função executiva é centralizada num primeiro-ministro ou chanceler, mantidos autônomos o legislativo (parlamento) e o judiciário. O monarca, chefe de Estado, exerce um poder moderador, também designado por prerrogativa real, de influência moral sobre o povo e o governo, que só é utilizado em casos específicos, em funções protocolares, cerimoniais e representação diplomática ou, mais abrangentes, como a convocação de eleições em caso de dissolução do parlamento. As reais funções desse poder são variáveis de país para país.
A república aristocrática deixou de ser utilizada a partir da Idade Média. Era o governo exercido por determinada classe privilegiada, em razão de direitos de nascimento ou conquista.
Na república democrática, os membros do executivo, do legislativo e, em alguns casos, do judiciário são eleitos pelo povo para exercer suas funções por tempo determinado, em processo eleitoral direto ou indireto, podendo adotar o sistema presidencialista (o presidente é chefe de governo e chefe de estado, com rígida separação entre os poderes executivo, legislativo e judiciário) ou parlamentarista (chefia de governo e chefia de estado em duas figuras distintas; executivo precisa da sustentação do legislativo para se formar e governar).
A república autoritária é a popular ditadura, geralmente, apoiada em força militar, em que o grupo dominante quer garantir a sua manutenção no poder. Normalmente, os membros do legislativo são designados por processos autocráticos e existe a pretensão de perpetuação no poder, por meio da força e do patrulhamento ideológico.
Na república totalitária, os direitos fundamentais do cidadão subordinam-se ao interesse do Estado, cujo poder encontra-se preponderantemente no executivo, centralizado numa figura única de poder, acima dos demais, quando existem. Normalmente se apoia em força militar e há um nível rigoroso de censura e policiamento ideológico.
Na atualidade, a maioria dos Estados adota regimes democráticos de governo, seja como república ou como monarquia, embora ainda existam muitos Estados autoritários ou totalitaristas. A comunidade internacional tem, gradualmente, sinalizado a preferência por regimes democráticos.
Nos Estados democráticos, normalmente, a organização se dá em uma estrutura que separa as suas funções: legislativa, executiva e judiciária. Assim, cada poder de Estado tem sua função típica. A competência do legislativo é, genericamente, formular leis; a do executivo é governar e administrar os interesses do país, de acordo com as leis; e a do judiciário é resolver os conflitos de interesse entre particulares e entre entes do Estado e particulares, de acordo com as leis.
O Brasil é um Estado democrático de direito, sob a forma de república federativa presidencialista, organizando-se administrativamente de modo vertical com três entes federativos (União, Estados e Municípios), nas esferas federal, estaduais e municipais. O poder estatal na República Federativa do Brasil é repartido em três funções: legislativa, executiva e judiciária. Não é incomum encontrarmos referência à repartição dos Poderes do Estado. A própria Constituição da República usa o termo poder para se referir às funções do Estado: poder legislativo, poder executivo e poder judiciário. No entanto, é preciso lembrar que o poder político é uno, característico do Estado soberano. O que se divide, efetivamente, são as funções administrativo-governamentais, por necessidade prática, inclusive.
No entanto, reforce-se que o poder político é uno, característico do Estado soberano. O que se divide, efetivamente, são as funções administrativo-governamentais, por necessidade prática, inclusive e em razão da dimensão territorial do Brasil, bem como sua opção por organizar-se como Federação.Então, as funções do Poder Estatal no Brasil são organizadas, quanto às funções, em Legislativa, Executiva e Judiciária, e quanto às esferas de poder em Federal, Estaduais e Municipais.
Assim, o Legislativo Federal é composto pelo Congresso Nacional – Senado Federal + Câmara dos Deputados; nos estados são as Assembleias Legislativas e nos Municipais, as Câmaras de Vereadores.
O Executivo Federal é a Presidência da República, seus Ministérios e Secretarias; os Estaduais, o Governo de Estado e suas secretarias e os Municipais, Prefeitura Municipal e suas diretorias ou departamentos.
O Judiciário Federal inclui os Tribunais Superiores, Justiça Federal, Justiça do Trabalho, Justiça Eleitoral, Justiça Militar e na esfera Estadual temos os Tribunais de Justiça dos Estados. Não há Judiciário Municipal. Os fóruns da justiça que encontramos nos municípios são representações das justiças federal ou estadual.
Nesse contexto, cada poder tem sua competência (atribuição legal para a prática de algum ato) material e territorial.
A competência material se refere, propriamente, à função do poder.
Assim, a competência do legislativo é, genericamente, formular leis; a do executivo é governar e administrar os interesses do país, de acordo com as leis; e a do judiciário é resolver os conflitos de interesse entre particulares e entre entes do Estado e particulares, de acordo com as leis.
Os poderes do Estado conservam independência e autonomia entre si. Por isso, em regra, o legislativo deveria se limitar a elaborar leis, o executivo a gerir os interesses nacionais e o judiciário a julgar conflitos, que é o que chamamos de funções típicas. Porém, há previsões legais que autorizam que os poderes exerçam, atipicamente, funções que não lhes seriam próprias. Assim, o legislativo pode, atipicamente, administrar (organização interna) e julgar (CPIs); o executivo pode, atipicamente, legislar (decretos, portarias, instruções regulamentadoras etc.) e julgar (inquéritos administrativos e sindicâncias) e o judiciário pode, atipicamente, administrar (organização interna) e legislar (normas internas e súmulas vinculantes). Mas essas funções atípicas só podem ser exercidas se estiverem previstas em lei e na medida do que disser a lei, caso contrário, são ilegítimas e suas decisões não tem validade jurídica.
Além disso, para preservar o equilíbrio entre as funções, entre os poderes, para que nenhum deles seja absoluto, adotam-se algumas medidas que permitem o controle recíproco de atos (sistema de freios e contrapesos). Assim, por exemplo, o poder legislativo tem autonomia e independência para formular leis. Mas, feita a lei, ela deve ser encaminhada ao chefe do poder executivo para sanção, ou seja, para que expresse a concordância com o texto da lei. O chefe do executivo tem o poder de vetar leis ou trechos de leis que forem contrários aos interesses comuns, opondo-se a sua entrada em vigor. O judiciário, por sua vez, tem o poder de declarar uma lei inválida por inconstitucionalidade, por exemplo.
Essa é a repartição da competência material de cada função do Estado.
A competência territorial diz respeito à área geográfica alcançada por um ato de cada poder. Então, falamos das esferas de governo: federal, estadual ou municipal. Um ato de um órgão federal valerá em todo o território brasileiro. Um ato de um órgão estadual tem exigência apenas no território daquele estado. E um ato de um órgão municipal, apenas no território do município.
É importante, nesse ponto, falar sobre a competência legislativa: quem tem poder para legislar, se são três os entes legislativos no Brasil (congresso, assembleias, câmaras de vereadores). É óbvio que o que a câmara de vereadores estabelecer só vale no território do município. O que a assembleia legislativa estabelecer, vale só no território do estado, em todos os seus municípios. O que o congresso nacional estabelecer vale no país todo, em todos os estados e municípios. Mas há casos em que pode ser necessário que todos os três entes legislem sobre determinada questão.
Por isso, para organizar a elaboração de leis, a Constituição da República reparte a competência dos legislativos das três esferas por assuntos. Há assuntos sobre os quais apenas o legislativo federal pode dispor (competência privativa ou exclusiva), por exemplo. Há outros, sobre os quais o legislativo federal e os estaduais podem fazer leis ou, ainda, matérias que podem ser reguladas pelas três esferas de legislativo (competência concorrente).
Embora não haja hierarquia entre as três esferas, em razão da forma como foi estabelecido o nosso pacto federativo, quando a competência é concorrente entre os três legislativos, cria-se uma hierarquia de regulamentação, exigindo que o ente de menor abrangência observe a legislação posta pelo de maior abrangência antes de legislar, de tal modo que não contrarie leis superiores. Assim, quando o município tem autorização para legislar sobre determinado assunto que o estado e a federação também tenham, ele não pode contrariar lei estadual nem federal, sob pena de invalidade, exceto se demonstrada a situação peculiar local que precisa regular aquela questão de forma diversa. Por outro lado, quando todos podem legislar sobre um mesmo assunto, o ente de maior abrangência, que é a federação, deverá se limitar a estabelecer as diretrizes gerais, o estado poderá complementar essa norma geral, regulando o que seja de interesse regional e o município poderá complementar as legislações superiores naquilo que seja caracterizado como interesse local.
Toda essa disciplina se encontra nos artigos 22, 24 e 30, incisos I e II da Constituição da República.
Para encerrar essas breves noções, é importante ter em mente a estrutura hierárquica das normas no ordenamento jurídico brasileiro. A norma mais importante e superior a todas as demais é a Constituição, seguida pelas demais, assim:
Constituição da República;
Leis Federais e Tratados Internacionais Ratificados;
Constituições Estaduais;
Leis Estaduais;
Leis Orgânicas de Municípios;
Leis Municipais.
Essas são normas elaboradas pelo poder típico, o legislativo.
Mas, além delas, existe um sem número de normas expedidas pelos entes do poder executivo nas três esferas: decretos, portarias, instruções normativas, orientações normativas, resoluções etc.
Também compõem o direito, como mencionado, a produção do poder judiciário, como enunciados, súmulas, súmulas vinculantes.
Ainda que exista certa polêmica entre os estudiosos do direito, é preciso considerar que a doutrina – interpretação, avaliação e proposições dos estudiosos do direito - também compõem o direito, dando-lhe sentido, valor e fazendo-o evoluir.
Tudo isso se refere ao direito posto. E, além dele, como vimos, temos os princípios jurídicos, que também integram o direito.